Havia dois momentos no dia que lhe eram especialmente insuportáveis.
Um deles, e, o mais temido era a hora de dormir, por isso o adiava profundamente. Tinha-se descoberto um procrastinador do sono. Tinha orgulho disso.
Sua mãe conta até hoje, que quando criança: Ele brincava sem parar e dormia em pé. Ele ia andando assim, pelo corredor e de repente trombava numa parede, e caia, ou então, dormia em cima do velotrol, passeando pela sala. Era a hora que eu o pegava no colo e o punha na cama. Meu menino. Tão lindo.
Não tinha memória disso. E se perguntava ainda, já adulto, o que será que o impedia de dormir nos primeiros anos de vida?
Nos dias de hoje era claro. No silêncio do quarto os olhos fechados, a escuridão. Porque o quarto tinha que estar escuro, porque tinha que haver silêncio, porque o sono era tímido e tudo o espantava, tudo o punha pra longe. Especialmente os pensamentos.
As preocupações com o futuro, as preocupações com a família, as preocupações com o trabalho, a carreira, as contas, a pia que precisa ser consertada, o veterinário que precisa vir no dia 7, a ligação que precisava fazer e que tinha esquecido, a revisão do carro...
E mais recentemente lembranças que preferia não ter pelo simples fato de que elas não valiam a pena, e doíam, fundo. Porque era tão indomável o rebanho das memórias? Por que elas vinham sem serem convidadas?
Fuçando por dentro o coração que só queria o direito de bater em paz e se ressentia. Não bastava a nicotina, o tabaco, o monóxido de carbono e mais de 5000 substâncias para as quais não há níveis seguros de consumo? Tinha que haver lembranças torturantes e sobre as quais não tinha o menor controle e que somente o faziam querer acender outro cigarro?
Durante a maior parte do dia estava bem, e fazia planos e encontrava grandes soluções. E tinha esperanças, e acreditava nos benefícios da vitamina C, e na bondade de algumas pessoas. E se pensava no que o incomodava pensava pouco, pensava rápido. Mas à noite no silêncio aquilo martelava como o canto de uma araponga na janela e não o deixava dormir.
Rolava de um lado para o outro, mudava a ordem dos travesseiros, ligava o ar condicionado.
Uma noite tentou ler. Tinha a profunda esperança de que o livro lhe daria sono. Desilusão. Leu um livro inteiro. Mas o livro era ótimo. Menos mal então. Pelo menos não pensou em nada. E de manhã, depois do café adormeceu um sono sem pensar.
E acordou sobressaltado pelo telefone.
Não, hoje não vou. Tive insônia. Fui dormir agora. Não se incomode. Tudo bem. Voltarei a dormir.
E não voltou. E o relógio do celular lhe disse que ele dormira uma hora. Talvez um pouco menos.
E era esse o outro grande momento do dia que lhe fazia mal. Porque ao acordar, o primeiro pensamento que lhe vinha, antes mesmo que abrisse os olhos era ela.
A diaba loira. Apelido colocado por um amigo na cachorra sem coração que tinha destruído o que restava de ilusão a dentadas. A macaca branquelona que quebrara toda a loja de cristais deixando pra ele a conta imensa por pagar.
Mais a vergonha de ter dito àquela puta que a amava tantas vezes. A raiva de se deixar levar por um romance natimorto. Porque na primeira conversa filosófica que tiveram já sabia que aquela merda nunca daria certo.
Pra o que é que serve a maturidade? Pra nos dizer que isso ou aquilo não vai ou vai funcionar. Para que tentamos ludibriar a maturidade? Porque querer enganá-la? Dar-lhe desculpas?Tentar provar que está errada?
Ela nunca se engana. Ela sempre vence com aquela cara de palestrante te dizendo: Conforme queríamos ter demonstrado, o produto final é exatamente o esperado. Você não quis acreditar em mim e foi se meter com uma vadia. Tem um tipo de mulher que ta aí só pra você comer e ir embora.
Prometeu mais uma vez, pra si mesmo aprender, de uma vez por todas, a ouvir a voz da experiência. Porque ela era que um dia tomaria o lugar da sua mãe para lhe dizer: Leva um casaco, vai esfriar.
Fora esses dois momentos no dia era feliz. E seu único sonho agora era esquecer e estar livre pra errar de novo.
E quer saber? Dificilmente erraria. Um dia chega.
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