quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A filha do prefeito

Despejou lentamente o vidro de perfume na pia do banheiro. Era um vidro grande. O frasco se esvaziava lentamente e o cheiro invadia tudo como o cheiro das flores num funeral grandioso. Pensou que o quarto ficaria também tomado por esse cheiro, talvez a casa. Talvez a vida. Tinha a impressão agora de que o cheiro jamais sairia dele. E que cada vez que alguém elogiasse esse perfume se lembraria da voz do homem dizendo : é o meu cheiro preferido, quero sentir em você cada vez que eu chegar. Perdeu-se na memória dessa voz que puxou olhos, que trouxeram boca, que encheram de lágrimas quentes e preguiçosas o seu rosto. O vidro estava vazio. Assim também ficaria o coração logo, logo. Suas narinas ardiam pelo cheiro forte do perfume, pelo choro, sentia o gosto do perfume misturado com as lágrimas e tudo era amargo. Esse cheiro lhe estava pegado à alma. Esse gosto lhe estava pregado à língua. Arremessou o frasco no lixo do banheiro e se virou para o quarto. Um quarto burguês de módulos escuros e cama sempre arrumada mesmo que pra isso se dormisse em cima da colcha, como quem cochila depois do almoço. De fora olhando-o poderíamos afirmar que era ele um quase,era ele um babaca, era ele somente novo demais e desorientado pela pouca experiência. Pela pouca referência naquilo que tange gostos.
O apartamento era quase. O prédio era quase bonito. A decoração quase fazia sentido. Embora parecesse mais antiga que o dono ou talvez demonstrasse um esforço para remeter ao que é pratico, moderno e cool. Esforço extremado e que se traduzia em ostentação, falta de estilo e frieza. A sala obvia com cortinas que só ficariam bem no corredor de um prédio de consultórios, a cozinha americana as escadas brancas de metal e no segundo andar o quarto, a cama e o banheiro, tudo comum e contrastando com o requinte desqualificado do piso inferior.
O cheiro do perfume realmente estava muito forte e começou a se sentir nauseado. Pensou em desmaiar. Queria desmaiar. Seria encontrado pela mãe no final da tarde, quando ela chegasse do trabalho. Ela se desesperaria. Gritaria por socorro. Ele acordaria reconfortado pela pena que ela teria dele. E tudo o que ele queria agora é que sentissem pena dele. Ele sentia pena dele. Queria pena por ter se entregado àquele homem. Pena por ter querido aquele amor que tinha dado errado. Mas digno de pena porque na verdade sabia que nunca quis nada a não ser o enfeite que o homem trazia pra sua vida. A validação do seu ideal de status , pois apesar de considerar-se rico não houve um dia sequer em que aquele homem não o fizesse se sentir como o garoto da periferia que no fundo da alma ele sabia que era e que jamais deixaria de ser. Não importa a quantidade de verniz dos diplomas, das viagens, da cultura ensaiada que ele adquirisse. Sentia-se pequeno, incapaz, fraco e desprezível e por isso queria do outro qualquer coisa de nobreza que sabia jamais haveria em si. Pensou em abrir a janela. Mas a luz que entraria não condizia com o seu estado melancólico e ele lera em livros, que deixava pela metade que a tristeza requer a sombra. Olhou seus livros e mais uma vez lembrou. Livros que o homem dizia: você não vai lê-los, e ao dizer isso o irritava profundamente. Não porque ele os leria, mas porque esse segredo era só seu, e quem este homem pensava que era para dizer-lhe a verdade. Sentou-se na cama de maneira ensaiada. Sentiu-se cansado, mas manteve a pose que lhe concedia, quase como uma indulgência, um certo ar de Cleópatra. Dessa vez estava realmente triste. Dessa vez realmente sentia uma perda, um vazio, e não sabia o porquê, e não sabia como se comportar. Tentara parecer civilizado. Tentara falar com o homem, mas a presença dele o incomodava porque o homem sabia que ele era uma fraude. Melhor não falar com ele jamais. Melhor provocar uma briga derradeira. Sabia que o homem seria seco e isso lhe daria margem para cavar essa briga. Para cortar relações. E livrar-se de uma vez por todas desse incômodo. Desse inimigo. Que se tornara inimigo apenas por ter adquirido dele intimidade. Apenas por ter-lhe olhado nos olhos e visto o que ele era realmente.
Arquitetou o plano. Ensaiou a briga. Intuiu que o homem saberia que tudo fora ensaiado e por isso não lhe daria margem de revidar. A coisa se daria na internet. Depois, sem tempo de resposta apagaria contatos. O excluiria de tudo. Estaria livre.
Pela primeira vez em muitos meses pode descansar um pouco. Se livraria de vez daquele que sabia que ele era um sapo que uma bruxa má tinha transformado em príncipe. Seguir sua natureza de sapo seria mais confortável e digno. Mas como se livrar de tudo aquilo que inventara na sua desnatureza de príncipe, sua casa, seus hábitos, sua vida inteira. Optava mais uma vez pelo feitiço da bruxa, pelo fato de que alguns não trazem em seus corações essas forças voltadas pra luz. Manteria as janelas fechadas enquanto houvesse sol lá fora mesmo que aquele perfume francês despejado na pia o fizesse vomitar mil vezes.
O ar abatido, a palidez causada pelos vômitos impressionaria na faculdade, à noite. Sua imagem de sensível e nobre estaria intacta. Por fim sorriu e decidiu guardar o par de tênis que o homem lhe dera porque pareciam realmente caros e tinham sido elogiados em mais de uma ocasião. Na sua incoerência abissal não sabia que o perfume custara o dobro do preço. Não sabia o valor real de um perfume, não imaginava que uma sutileza pudesse ser tão cara. Se soubesse ficaria realmente arrependido de ter deixado escorrer pelo ralo a mais rara das riquezas que sobre o seu corpo já pousou.

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