segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Lua e água.

O filme terminou e a madrugada fez silêncio dentro casa. O barulho de um e de outro carro, fora. Os ares condicionados dos vizinhos. O resto quieto. Como quando se acorda e não se pode lembrar. Os flashes inconseqüentes. E com eles um monte de coisas caladas como a casa. A casa dormindo do fundo da alma. Quanta coisa dentro suspensa. Quanta história. Quanta vontade. A memória pregando peças em quem por esse momento não podia lembrar nada que tivesse sido ruim. Respirou o alívio profundo de nenhuma mágoa. De nenhum remorso. A profunda sensação de estar quites. Saudades agulhas que não feriam de tão finas cravadas na carne e suspensas no ar. Como pelos de metal que não doem. Confortável nessa roupa, tão diferente de tudo que já tinha usado deixou desfilar diante de si o que quer que quisesse passar. E sentia o peito grande. Como se nada, mas nada mesmo tivesse algum lastro. Tão calmo estava que pensou que pra todos seria assim naquela noite. Um gosto de cebolitos na boca. Lembrança da infância com suas angústias. Seus segredos de pedra. A abertura da novela. As primeiras consciências. O medo de ir ora escola que não fazia sentido e a certeza que nem mesmo naquele momento fez sentido.Parquinhos, viagens de carro, amigos que foram ficando pra trás porque mudar era constante. Porque partir era normal. Habituado que era. Adolescência tão sem glória, tão sem importância. Tão distante de tudo o que era. O tão importante que fora na época que já não fazia sentido. A lembrança da menina gorda, mais velha que chamava atenção na escola por dizer besteiras atrozes. E a noção de saber agora o porquê de sempre simpatizar com ela. Ela queria era só atenção e era isso o que todos queriam. Ao seu modo. Do seu jeito. Nunca soube direito a impressão que causava nas pessoas até que sentiu a inveja, há pouco tempo atrás de quem lhe disse. Você sabe muito bem como se colocar num ambiente para que todos olhem pra você. Defendeu-se dizendo: Mas é inconsciente. A descoberta da maldade há tão pouco tempo com a resposta que veio seca e ríspida : É mentira. Você faz de propósito. E por que o faria? E todas as outras vezes que dançou com essa vileza saltaram-lhe aos olhos e reconhecendo cada uma delas cumprimentou-as. Vontade de chorar que passou rápido. Sempre achando que todos eram iguais. Que todos estavam do mesmo lado. A consciência do não. O conselho do mestre dizendo. Não pense que todos são como você. É natural julgar? O aprendizado do amor incondicional. Mas se tem condição pode chamar também amor? A certeza que não. Não pode. Se tem condição, meu bem, não é amor que me das. As maldades quando praticadas são conscientes ou inconscientes? Pensou que ela existe nos dois modos e só que a pratica sabe ao certo responder. Mas quando ela vem de quem se ama, nada é mais cruel porque te encontra entregue. Barriga pra cima, um bicho, com todos os órgãos vitais à mostra. Qualquer um que desfira o golpe em alguém nessa posição deveria ter a mão cortada, o pau cortado, o clitóris extirpado. Deveria ter cauterizados em si todos os sentidos. Jamais o gosto de um beijo. Da hortelã. Do café quentinho na caneca de cerâmica. Do choro lavando as feridas. E soube que todo mau teria seus prazeres negados. De alguma maneira atraíram pra si a maldição de serem sabotados aí, e em algum momento o sentiriam ou simplesmente deixariam de sentir. Não sentir é o castigo pior que há. Não sentir é estar morto. Pena de quem não sente. Quantas vezes não esteve aqui. Quantas vezes anestesia. Quantas vezes inconsciência. Quantas vezes gritos. Quantas vezes destempero. Tudo pra proteger o que tinha de mais frágil. De mais delicado. Sempre saindo pela culatra o tiro. Descobriu que atirava com a arma apontada pra si. Sempre sem querer era em si que atirava. Mas então não tinha experimentado ser amado? Não tinha experimentado ser querido? Talvez sim. Mas nunca do jeito que amara e que quisera. Nunca incondicional. Uma vez. Uma vez o foi. Mas era cedo demais. Isso foi muito antes de saber a cara que tinha. O jeito que tinha. Isso foi antes de saber as formas da sua boca e dos seus olhos. Teria pedido tempo? Sentia que não. Que o tempo era seu amigo. Que o tempo guardava surpresas gigantes. Sentiu um cheiro de gelo no ar. Lembrou arrumar as tinas. Coisas novas chegando. Uma noite de cantar e a surpresa de tudo o que ela pode trazer. Sentiu saudades de tudo. Sentiu vontade de tudo. A memória embusteira segurando antes de si tudo o que não somava. Saudade de dormir contigo meu amor. E a certeza de que o amor era dele e ninguém o tinha roubado. E na hora certa crescia rápido pintando de verde o muro seco. Um filme. Um filme que depois dele o trouxe de volta pra si. Como um soco no meio da cara devolvendo a consciência. E a alegria imediata de cada dor e de cada gozo invadiu como a tromba d’água invade a cidade. E dormiu enconchilhado sem pra isso precisar de ninguém por perto.

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