sábado, 7 de novembro de 2009

Catarina

Sentou-se na cadeira e olhou a bancada. A maquiagem milimetricamente disposta. Cada coisa no se lugar. Poderia pegar cada um dos itens sem mesmo ter que olhar para eles. Olhou-se no espelho, puxou os cabelos para traz, pode ver a leve descamação causada pelo último peeling. A pele viçosa, brilhante, as rugas abaixo dos olhos, levemente inchados. Acendeu um cigarro. Puxou um trago, pousou o cigarro no cinzeiro improvisado. Afastou novamente os cabelos. Precisava retocar a raiz. Os anos e suas conseqüências, os cabelos brancos. Inadvertidamente eles branqueavam, cada vez mais, cada vez mais rápido. As bolsas embaixo dos olhos, as pequenas rugas nas quais o peeling não dava jeito. Pegou os óculos, colocou-os. Olhou a bancada novamente. Tirou os óculos, passou o lenço umedecido. Limpar a pele, cuidar da pele, há 27 anos o cuidado com a pele. Mas ninguém lhe dava a idade que tinha. 52 anos. Há 27 anos não pegava sol. Há 27 anos não sentia mais o sol queimando-lhe o rosto numa tarde de verão na praia. Há 27 anos não aproveitava um dia de verão na praia. Mas ninguém lhe dava a idade que tinha. E fumava e bebia, mas não pegava sol, e gostava tanto do sol. A memória de uma tarde na praia há 25 anos. Quando conheceu aqueles olhos verdes. Pedaços de luar... Cantarolou a música. Pensou, por que nunca aprendera espanhol? E os olhos verdes e os dentes brancos. O torso de uma escultura renascentista. A pele branca castigada pelo sol. O charme de homem jovem. Fumando como um astro de cinema. A ebulição dos hormônios. O desejo. Não sabia há quantos anos não sentia aquilo. Há uns 24 anos, a idade do seu filho mais novo. Aborreceu-se por um momento, será que todas as minhas memórias têm mais do que vinte anos? O nome... o nome dele não lembrava. Molhou a esponja do pancake na água, passou no pote de pancake, começou a aplicar no rosto, E cobre-se a pele linda. Uma grossa camada. Massa para tampar os buracos, as marcas, mas não havia marcas. Os peelings, há 18 anos fazia  peelings, uma memória mais recente, sentiu-se mais jovens, há 18 anos fazia peelings e ninguém lhe dava a idade que tinha. Adorava dizer a todos a idade. Adorava a cara de espanto das pessoas, o rosto sem marcas, sem plásticas, somente as bolsas sob os olhos, levemente enrugadas, talvez se dormisse mais cedo, talvez se evitasse o vinho, talvez se abandonasse o cigarro. Mas o sol, o grande inimigo esse não pegava e ela gostava tanto do sol. Prazer que era estar deitada sob o sol, lhe sentido queimar o rosto.As marcas todas por dentro. As marcas todas invisíveis. Sentiu saudades. Os olhos verdes de 19 anos, o peito definido de 19 anos, a pele curtida pelo sol aos 19 anos. Por que se lembrava dele naquela tarde, por quê? Há tantos anos não se lembrava dele. Fora o primeiro, fora o segundo, fora o terceiro, fora tantos que nem tinha uma conta exata e foi só um verão. Amor de praia não sobe a serra.  Mas ela morava na praia. Ela ficou. Ele subiu a serra. Nunca mais teve notícias, nunca mais ouviu falar. Mas hoje, particularmente, hoje se lembrava dele. Pancake aplicado, rosto branco, um fantasma, uma rainha, alva, nobre. Traço do olho, hora dos lápis. Preto, branco, marrom, vermelho, um arco íris triste e dramático, sorriu de leve, achou graça do que pensou. O cigarro acabava. Acendeu outro, e fumou um, dois tragos. Lápis marrom, a sombracelha, lápis preto, branco e vermelho os olhos. Muito lápis, na cena de choro virara uma panda, a platéia delirava, a platéia ama as atrizes que choram. O efeito do lápis derretendo com as lágrimas excitava a platéia, e nem era difícil chorar. Truque para abrir os olhos, truque para dar-lhes expressividade, a alma seca. O ex-marido. Maldito. Os olhos verdes de novo, os filhos, os olhos verdes. Queria ter tido filhos com olhos verdes, filhos de olhos verdes. Blush, sombras. Trabalhar o rosto com luz e sombra. Sabia se maquiar. Orgulhava-se disso. Tinha feito um curso. Tinha feito muitos cursos. Vários cursos. Cursos demais. Os olhos verdes. Lembrou-lhe a voz. Pode lembrar a voz dele. Pode lembra-se do que ele lhe disse estendendo-lhe a mão diante do barco, ele dentro ela fora, a tarde, o sol no rosto, a mão estendida. Não tem medo, vem. Ele lhe disse e ela foi. E sentiu corajosa, e se sentiu moderna, e desafiadora. Minha vingança contra papai. Tão velho agora.  Olhos verdes. Lembrou-lho o cheiro, o gosto. Por que você nesse fim de tarde? Há tanto tempo. Maquiagem pronta, fazer o coque. A atriz mais nova chegou. Como chega tarde, como chega atrasada. Um dia o espetáculo atrasa por causa dessa menina. Ignorou que a menina já passara dos 30. E o barulho que ela trazia, e a necessidade da camareira, que era mais jovem do que a menina, que era inexperiente, que era atrapalhada, que era tão ou mais barulhenta do que a menina, a atriz mais nova. Estavam prontos cabelos e maquiagem. Estava pronta. Foi fumar um cigarro na coxia. A casa estaria cheia. A casa sempre estava cheia. Tinha consciência de que não era por ela. De que seria pelo jovem. Mas tanto faz. Aquecer a voz, aquecer o corpo. O aviso de que a casa estava cheia. As pessoas não artistas andando pra lá e pra cá com suas caras preocupadas, de que tudo tem que dar certo. Olhos verdes, no meio do palco, no meio do aquecimento. Olhos verdes, sua voz, seu cheiro, seu gosto, a dor da primeira vez. Queimando, rasgando, abrindo o caminho por onde viriam os filhos. Olhos verdes dizendo eu não quero te machucar. Olhos verdes tão doces. O marido tão bruto. Nunca mais, nunca mais prazer igual ao de olhos verdes, as tardes no barco. A sensação de que nunca mais poderia sentar-se com as pernas cruzadas.  Às vezes depois com olhos verdes, o barco, champagne, caviar na torrada da padaria que ela comprara no caminho. O sorriso, dentes brancos, o cheiro, 19 anos. Há 23 anos não tomava sol. O assistente passa, vamos abrir, por favor, vamos liberar o palco. Mais 15 minutos, a atriz mais nova não estava pronta. Sorriu irônica. O vestido apertou na cintura, no peito, a raiva cresceu na garganta. Estava engordando, malditos jantares, maldita ansiedade. Há 17 anos não tinha a mesma cintura.  Maldito ex-marido, maldito o dia em que olhos verdes foi embora. Respirou fundo. Havia hora certa para borrarem-se os olhos. Palco livre, platéia que entra. Sinal um, mais um cigarro, sinal dois o coração disparado, sinal três entra em cena. Soberba, absoluta, sente-se linda e despeja toda a raiva que sentia do mundo numa torrente escrita há séculos, mas feita sob medida pra sua boca gritar. E grita, e gesticula, e se pavoneia e seduz, e suspende as saias, e mostra as pernas, vaidosa de suas pernas, e chora, e borra o lápis, e se recupera e enxuga as lágrimas, mas de repente se perde, se atrapalha, e seca a torrente, e some o chão. E olha pra coxia e vê, na sombra, olhos verdes, e vê, na luz, a sua mão, e ouve a sua voz dizendo vem. E a dor, e queimando, e dessa vez não no centro do seu corpo, mas no meio do seu peito, irradiando pelo braço esquerdo, pela mandíbula. Olhos verdes lhe chamando, luz que cai lenta. E o resto... Sem ela.

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