quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Uma outra epifania


Acendi a luz da cozinha, luz branca, fria, e me lembrei de você reclamando da feiúra que ela dava aos ambientes. Reclamando da tristeza que ela trazia. Mas não consegui me lembrar a que local exatamente você a comparava. Se um hospital, uma farmácia, não me lembro. Mas me lembrei de outras sensibilidades que você me despertou quanto às cores, texturas, gostos, e que nunca mais vou poder separá-los, você e os queijos azuis.  À quanta coisa eu nunca tinha prestado atenção, e hoje, deparando-me com uma foto sua descrita em 1938, em folhas amareladas do livro apanhado na biblioteca me percebo, enfim, sem a ofuscação das luzes fortes dos fogos e da manhã nascente o quanto foi importante. O quanto foi necessário, o quanto foi descuidado, o quanto fui imbecil. Acho que a melhor palavra ao invés de imbecil seria ignorante, ou talvez ainda descuidado. Mas como se ter cuidado com aquilo sobre o que se ignora? E com essa frase me obrigo a perdoar mais dois ou quatro na minha vida. Será isso? Só podemos perdoar aquilo que já perdoamos em nós mesmos? Só podemos aceitar nos outros aquilo que em nós mesmos foi aceito? É preciso coragem para olhar-se de frente no espelho sob essa luz fria que você odeia, e aceitar o erros, os descuidos e o pior ainda, aceitar que os cometam contra a gente ,pois automaticamente todas as desculpas que pudermos usar pra nós mesmos serão usadas para os outros e se todo mundo soubesse o que vai na cabeça de cada um possivelmente estaríamos isolados em solitárias, guardados do convívio humano para sempre. Nós que somos homens e que nos suportamos por uma tênue linha que quando rompida causa desconforto a todos, apenas por nos lembrar o quanto somos frágeis e o quanto estamos expostos, e o quanto a vida vale.  É estranha essa posição entre a juventude e a velhice.  E não faz muito sentido no século XXI. As idades estão perdidas no tempo ou sou eu que estou perdido no tempo. A juventude estranha se formou sob os nossos olhos e não percebemos que criávamos monstros sem alma ou foi a dádiva do século da ciência a secagem das almas que antes acompanhavam as vontades  e os instintos na consciência que se chama homem. Por que com tanto desenvolvimento tecnológico alguma coisa se perdeu? O que é que falta nessa massa que se levanta sem ídolos relevantes e ícones descartáveis como a cultura pop? A sucessão de dançarinas rebolativas içadas à posição de grandes artistas num mundo que já conheceu grandes artistas? Pra onde foram os grandes artistas? Pra onde foi a arte? Que caminhos ela tomou? Será que estamos perto demais para obsevá-la crescendo? Sobrepondo-se sobre essa gente entorpecida ou não e interessada quase que exclusivamente no consumo? Será o consumo a expressão artística do século? A grande arte do século é saber fazer-se consumir?  O grande ideal artístico de hoje será consuma-me? E tudo isso me vem do simples gesto de apertar um interruptor e ver a cozinha encher-se da luz branca que você odeia. Muitas questões, muitas questões e qual a real relevância delas? A quem interessa? Será que era isso mesmo que Duchamps queria com o seu protesto, sua, realmente, artística, inspirada, brincadeira? Será que ele sabia as conseqüências que isso teria sobre o mundo onde as pessoas não são levadas a refletir? Onde a maioria das pessoas deve viver sem pensar para que funcionem como massa de manobra? Será que isso interessa a alguém? Ou o melhor que faço é calar-me e tornar-me consumível?... E tudo isso me vem do simples gesto de apertar um interruptor e ver a cozinha encher-se da luz branca que você odeia. Que haja pelo menos um  você pra cada eu. Pra que eu possa perceber que a luz feia e branca, e fria, que me empurra o mundo está muito aquém das possibilidades de iluminar.

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