quarta-feira, 31 de março de 2010

e do tamanho de um punho fechado

As primeiras cores apareciam  e um vento seco chegava anunciando o sol que lentamente rebentava  no horizonte,clareando a paisagem sem cor. Tudo pálido, rachado. Restos de coisas retorcidas, congeladas num último esticar-se  em busca de alguma alento. Um galho como um braço desprendido do corpo se arrastava, dedos crispados erguidos pro céu. Só o que se movia era o vento, e por ele as coisas mortas e  poeira dançavam como fantasmas. Uma paisagem onde só  solidão era forte e firme. Sem canto das folhas, sem magia. Era só mais uma vez o céu limpo e o ocre desbotado da terra até onde a vista alcançava. Tudo tinha absolutamente a mesma cor. Tudo tinha absolutamente o mesmo gosto. Tudo era absolutamente a mesma coisa. Todas as formas fundidas, todas as matérias unificadas, todas as cascas endurecidas. Tudo era calo. Tudo era duro. E tudo mais cedo ou tarde virava pó. Se dissolvendo no vento. Crepitando sob o sol. Se desfazendo, se desunindo, desconectando. Ossos, madeira e terra. A construção parecia fundida ao chão derretendo e por ele se dispersando.Feitos da mesma matéria foi a primeira a se uniformizar dando sinal daquilo que viria. Nem mais o cheiro de morte havia no ar. Um ar que parecia duro, que era com custo que se o respirava. Que tinha o gosto da terra, da casa, das plantas, dos ossos. A língua dentro da boca como um torrão dessa mesma terra que um dia foi barro que fez a casa, que fez o poço que não passava de uma lembrança, como uma concha que se cata numa praia pra um dia se lembrar que vira o mar. Havia dias tentara uma vez mais. Sonhara com água e fora até o poço ainda de noite e nada. Como partir? Com que forças andar e pra onde? Com que esperança? Como andar? Era dia e esconder-se do sol era a lei. Rezar pra que ele fosse logo embora, rezar pra que a chuva caísse, rezar já sem muita esperança, a não ser aquela que quer existir por capricho . Era essa noite que deveria partir? Ou era essa noite que chegaria ajuda? A única coisa que cai do céu é água, lembrou o avô, o velho xucro e seco, o resto, tem-se que fazer aparecer. A única coisa de que precisava agora era água. Se tivesse água poderia fazer tudo aparecer. Se tivesse água poderia remendar as paredes. Poderia começar um roçado. Poderia ter então galinhas. Poderia quem sabe uma vaca. E sorriu banguela à lembrança de um copo de leite, E se encolheu no canto inteiro que restava das paredes. E se resignou a esperar que o sol partisse. E partiria com o sol? Pra onde? Pra que lado? Onde estavam as coisas? Onde estava a água? E teria forças, mesmo se soubesse que rumo tomar, teria forças pra caminhar além da cerca?Quanto teria que andar? E para onde? E por que esperara? Porque não partira ainda? Por que esperança? Pra que? Era preciso esperar o sol baixar. Com um pouco de sorte encontraria algum bicho. Beberia com prazer agora o sangue de qualquer bicho que cruzasse o seu caminho. Os valores todos mudados. A moral da necessidade. Os pudores da sobrevivência tão diferentes . O sangue de um cachorro lhe parecia apetitoso aos lábios e mesmo o seu estômago pediu por ele. Quis dormir e sonhar que sugava o sangue de um cão. Quis dormir mas teve medo. Era hoje, era preciso partir. Ficar e morrer, partir e morrer. Morrer era o certo. Ficar ou partir pareciam determinar somente o onde o corpo tombaria como um tronco de madeira. Mas a esperança de no caminho encontrar o tal cachorro, ou um lagarto, ou o que fosse. Devia ouvir essa fada também já ocre como todo o resto? Não fora ela que o convencera a ficar, com a esperança de que viria do céu a sua água. Não seria só mais uma armadilha dessa fada? Esquentava mais. Quis chorar. E pensou que chorar seria bom. Poderia lamber as lágrimas que desceriam pelo rosto. Quis chorar muito. Quis chorar com uma intensidade até então desconhecida. Mas dentro era ocre também. Não haveria lagrimas, com um pouco de sorte hoje mijaria e mais uma vez beberia o próprio mijo. Comeria as próprias fezes e daí teria forças pra se levantar depois do sol partir e fugir dessa fada desafiando a todos os sortilégios por ela jogados. Já não cria mais em nada. Queria mijar, queria querer mijar. Reparou que também ficara ocre. Reparou que também virava terra. Era hora de partir. Era hora de sair dali, mas pra onde?  Pra que lado? Precisa ter um plano. Precisava ter um rumo. Seguiria o ponto onde o sol se esconde, assim ele demoraria mais para voltar no dia seguinte, perseguiria a noite e em algum momento encontraria orvalho, e lamberia as pedras  e seria tão bom. Levaria só o corpo, os panos que lhe cobriam. Mais nada pra carregar consigo. Mais nada. Estava decidido. Nessa noite partiria, perseguiria a noite. A algum lugar ela o levaria. E encontraria um lugar pra se esconder do sol no dia seguinte. Mas onde? Onde se protegeria  do sol no dia seguinte? Precisava saber onde se protegeria do sol no dia seguinte. Não, não precisava. E era só de água que precisava pra fazer todo o resto aparecer.  E água é a única coisa que cai do céu.